Diante das mudanças advindas da contemporaneidade, cabe aos arquitetos e urbanistas revisitar seus papéis. Na contramão de um planejamento que visa cidades cada vez mais massificadas e indiferenciáveis, é primordial que se estabeleçam práticas de resistência a fim de retomar a cidade para o pedestre. Para serem efetivas, tais práticas devem propor vínculos entre as pessoas que experienciam cotidianamente a cidade e o espaço urbano, e afastar-se de definições técnicas que pressupõem a participação popular de maneira fragmentada. Ao invés de fomentar a paranoia coletiva rumo a muralhas intransponíveis em busca de segurança excessiva, a cidade deve acompanhar a tecnologia na direção da abertura, do open-source, da colaboração e construção coletiva. A rua, além de sua função prática de conexão, deve potencializar vivências: espaço do acaso, reflexão, e, principalmente, apropriação.
O espaço urbano é o cenário onde se desenrolam atividades cotidianas e coletivas, engendradas por meio de fluxos constantes. É impossível (ou pelo menos, incompleto) desconsiderar aspectos históricos, sociais, econômicos e políticos em seu estudo, uma vez que o espaço está, invariavelmente, relacionado a tais questões. Ressalto, ainda, o fato de que a relação sujeito-cidade é sempre intermediada por nossos sentidos, responsáveis por assimilar o mundo exterior por meio da nossa individualidade.
Por este motivo, a experiência de andar pelas ruas da cidade hoje adquire uma conotação diversa do que em qualquer outra temporalidade, justamente por sujeitos e cidade estarem inseridos no contexto da contemporaneidade. Em razão do excessivo contingente imagético veiculado constantemente pela mídia atual, podemos considerar a visão como o nosso sentido mais estimulado atualmente. Pallasmaa (2011) afirma que a visão e a audição são os sentidos socialmente privilegiados, enquanto os outros três (olfato, paladar e tato) são considerados resquícios sensoriais arcaicos, com função meramente privada e, geralmente, reprimidos pelo código cultural. A consequência desta primazia é o empobrecimento da nossa experiência na cidade, que, para ser enriquecida, precisa ocorrer de maneira multissensorial.
Sentir o cheiro de pão ao passar em frente à uma padaria; perceber a textura de diferentes pisos por onde passamos; ouvir os sinos de uma catedral, são ações que acabam tornando-se automáticas e involuntárias em meio ao ritmo frenético a que estamos submetidos diariamente. No entanto, são justamente tais nuances sensoriais que nos conectam intimamente à cidade, por meio do estreitamento do afeto e da consequente criação de memórias.
Um dos produtos primordiais da relação sujeito-cidade para a sociedade de maneira geral é sua repercussão no campo das artes e da produção cultural. O contexto global e local torna-se, paradoxalmente, causa e consequência deste vínculo entre pessoas e cidade. Reflete o presente ao mesmo tempo que conjectura o futuro. Ao nos depararmos com exemplos de obras literárias classificadas como distópicas, como “Admirável Mundo Novo” (1932) de Aldous Huxley, “1984” (1949) de George Orwell, e “Fahrenheit 451” (1953) de Ray Bradbury, podemos ter uma ideia de como a experiência histórica e política de regimes totalitários influenciou, na conjuntura do pós-guerra, a imagem do futuro.
Neste tipo de ficção, têm-se uma visão extremamente pessimista de que estamos fadados a sobreviver em um mundo estritamente controlado, de constante vigilância e cerceamento da liberdade; ainda que a construção de cada um desses mundos tenha abordagens diversas, o resultado é similar.
Contrariamente, ainda no campo da literatura, poderíamos citar obras que, além de realizar uma crítica ao contexto vigente, conjecturam um outro viés de futuro, sendo classificadas no campo da utopia. Seu expoente máximo, “Utopia” (1516), de Thomas Morus, ou ainda “Notícias de Lugar Nenhum” (1890), de William Morris, demonstravam uma perspectiva de futuro pacífico, autogestionado e não dependente de instituições aprisionantes como o sistema monetário.
Estas concepções extremas sobre o futuro da cidade acabam sendo evidenciadas, inevitavelmente, no campo da arquitetura. Para traçar um paralelo que reforça a visão distópica, podemos citar o Panóptico de Bentham como um mecanismo arquitetônico que materializa os dispositivos de controle e vigilância. No extremo oposto, temos a revista Archigram, o grupo italiano Superstudioe o grupo japonês Metabolismo, cujos devaneios experimentais legitimaram a utopia como parte da produção de uma nova agenda arquitetônica.
A passagem do campo distópico para o utópico é, ao longo do tempo, constante e inevitável. Essas oscilações indicam um equilíbrio dinâmico, que poderia ser representado através da fita de Möbius. A fita é marcada por pontos de inflexão, que poderiam corresponder aos marcos do estabelecimento de um novo complexo de paradigmas culturais, artísticos e sociais. Dessa forma, por estarmos continuamente trafegando na alternância de extremos, o modo como moldamos imaginariamente o futuro pode também ser modificado, aproximando-se mais de um ou outro extremo.
Além da intermediação dos sentidos, que são inerentes aos sujeitos, podemos considerar ainda outro fator como preponderante na relação sujeito-cidade: as representações. Elas funcionam como um suporte por meio do qual os sujeitos apreendem o que os cerca, ou seja, maneiras de perceber a realidade criadas pelos sujeitos e seus sentidos. As representações podem estar na forma de imagens, textos e mapas, um sem-número de signos que nos auxiliam na compreensão de fenômenos complexos por implicarem abstrações, reduções da realidade.
Quando inseridos no espaço urbano, os sujeitos concebem não apenas uma, mas uma série de representações da cidade. As transformações espaço-temporais são capazes de moldar no imaginário individual concepções diferentes do mesmo espaço. Cada concepção representa um fragmento deste mesmo espaço. Podemos dizer, então, que o que percebemos como cidade é resultado da superposição destes fragmentos.
Uma alegoria acerca das múltiplas visões de um mesmo espaço está presente em uma interpretação da obra “Planolândia - um romance de muitas dimensões”(1884), de Edwin A. Abbott, em que os habitantes apenas enxergam em duas dimensões, como em uma planta baixa:
Chamo nosso mundo de Planolândia não por ser assim que o chamamos, mas para deixar sua natureza mais clara a vocês, meus ditosos leitores, que têm o privilégio de viver no espaço. Imagine uma grande folha de papel sobre a qual linhas retas, triângulos, quadrados, pentágonos, hexágonos e outras figuras, em vez de ficarem fixos em seus lugares, movem-se livremente em uma superfície, mas sem o poder de se elevarem sobre ela ou de mergulharem abaixo dela, assim como as sombras – só que com bordas firmes e luminosas. Assim você terá uma noção bem correta de meu país e de meus compatriotas. — ABBOTT, 2002, p.19.
Posteriormente, o protagonista, descobre a existência de outros espaços, como “Linhalândia” e “Espaçolândia”, que seriam, na verdade, ângulos de visão que modificam as formas de perceber o mesmo mundo inserido no contexto global.
Os fatores inscritos em um contexto – como as tecnologias –, além de atuarem sobre nossos sentidos, também atuam na natureza das representações. Isto ocorre uma vez que as tecnologias de cada temporalidade definem os dispositivos disponíveis para a criação de representações. A contemporaneidade assinala mudanças tecnológicas substanciais para a conformação da sociedade, com o surgimento da chamada cultura das mídias (SANTAELLA, 2003). O ritmo também é outro: o contemporâneo é sempre associado ao veloz, mutável, fugaz, instantâneo. Para Lévy,
[...] cada novo agenciamento, cada “máquina” tecnossocial acrescenta um espaço-tempo, uma cartografia especial, uma música singular a uma espécie de trama elástica e complicada em que as extensões se recobrem, se deformam e se conectam, em que as durações se opõem, interferem e se respondem. — LÉVY, 2011, p.22.
Ainda segundo Lévy (2011), o conceito de virtual seria o que existe em potência, e não em ato. A virtualidade pressupõe a desterritorialização, a emancipação do suporte concreto. Nesse sentido, poderíamos traçar um paralelo entre virtualidade e utopia, já que ambas assinalam a latência e a possibilidade de algo ainda não concretizado. Neste contexto, a atuação do arquiteto e urbanista se daria na compreensão de um campo expandido da arquitetura contemporânea, que incorporaria temas como arte, ciência e tecnologia, na construção de um futuro de cidade mais próximo da utopia.
A cidade aberta
Sennett, em seu livro “Construir e habitar” (2018), pontua características que nos permitem distinguir cidades abertas e fechadas. O conceito de cidade aberta se baseia em teorias como a de sistema aberto, no campo da matemática. Sistemas abertos seriam “[...] amplas redes de componentes sem controle central e com regras simples de operação”, que dariam “origem a um comportamento coletivo complexo, ao processamento sofisticado de informações e à adaptação pelo aprendizado ou a evolução.” (SENNETT, 2018, p.16).
O cerne da concepção de cidade aberta seria, segundo Sennett, trabalhar com as complexidades da cidade, uma vez que elas enriqueceriam a experiência.
O papel do planejador e do arquiteto seria ao mesmo tempo estimular a complexidade e criar uma ville interativa e sinérgica maior que a soma de suas partes, dentro da qual as pessoas seriam orientadas por bolsões de ordem. Em termos éticos, uma cidade aberta naturalmente toleraria as diferenças e promoveria a igualdade; mais especificamente, porém, ela libertaria da camisa de força do fixo e do familiar, criando um terreno para a experimentação e a expansão das experiências. — SENNETT, 2018, p.19-20.
A ideia de abrir a cidade estaria diretamente relacionada a novas dimensões perceptivas, que se relacionam com o que Paola Berenstein Jacques denomina “corpografia”:
Uma corpografia urbana é um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, que fica inscrita, mas também configura o corpo de quem experimenta. — JACQUES, 2007, p.95.
Ainda segundo Paola:
Os urbanistas indicam usos possíveis para o espaço projetado, mas são aqueles que o experimentam no cotidiano que os atualizam. São as apropriações e improvisações dos espaços que legitimam ou não aquilo que foi projetado, ou seja, são essas experiências do espaço pelos habitantes, passantes ou errantes que reinventam esses espaços no seu cotidiano. — JACQUES, 2007, p.95.
No entanto, para Sennett, a receptividade dos habitantes em vivenciar a cidade de diferentes maneiras pode ser estimulada por meio de alguns critérios simples de abertura – no sentido físico ou psicológico –, que convidam ao envolvimento ativo. As transformações efetivas ocorreriam, então, como uma retroalimentação, em que sujeitos e cidade modificam e são modificados com o impulso de intervenções iniciais.
Tais intervenções iniciais estariam no escopo dos arquitetos e urbanistas; porém, ao contrário do modelo projetual tradicional, os usuários dos espaços teriam total liberdade para adicionar suas contribuições às intervenções, moldando a cidade em uma espécie de construção coletiva e constante. Deste modo, suspende-se a ideia do profissional como detentor de todo o conhecimento técnico e ocorre também o empoderamento dos sujeitos, primordial para que se sintam convidados a explorar novas possibilidades e relacionar-se intimamente com os espaços de suas vivências.
Um ponto chave na definição de cidade aberta proposta por Sennett é que não existe “a” cidade aberta, mas sim “uma” cidade aberta; o que nos permite inferir que não há uma fórmula a ser seguida, mas que cada caso deve ser analisado separadamente por conter elementos e relações muito complexas.
Estes outros desdobramentos ativos da arquitetura entram em consonância, por exemplo, com o campo das artes visuais e do ativismo, que cada vez mais vêm explorando a inserção de obras e instalações no meio urbano, visando maior participação das pessoas.
Neste âmbito surgem também outros conceitos que, apesar de terem como inspiração inicial os ideais utópicos canônicos, como de Thomas Morus, adicionam outras vertentes que correspondem aos anseios de um contexto global marcado por novos adventos. Um destes autores é Nicolas Bourriaud, que em sua obra “Estética relacional” (2009), explica a ideia de “micro-utopia”: “As utopias sociais e a esperança revolucionária deram lugar a micro-utopias cotidianas e a estratégias miméticas: qualquer posição crítica ‘direta’ contra a sociedade é inútil, se baseada na ilusão de uma marginalidade hoje impossível, até mesmo reacionária.” (BOURRIAUD, 2009, p.43).
A manifestação das microutopias se daria em territórios de resistência, principalmente no processo de espetacularização e mercantilização das cidades como consequência das políticas neoliberais. Como na corpografia de Jacques e na teoria da cidade aberta de Sennett, o envolvimento ativo dos sujeitos seria capaz de promover verdadeiros vínculos com o território.
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Este artigo é um excerto originalmente publicado na Revista Cadernos de Pesquisa #10 da Associação Escola da Cidade e disponível para consulta aqui. Trata-se de publicação proveniente de Trabalho de Conclusão de Curso entregue em 2019 na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) sob orientação da Profa. Dra. Themis da Cruz Fagundes (UFSC).
Referências bibliográficas
ABBOTT, Edwin A. Planolândia: um romance de muitas dimensões [1884]. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.
JACQUES, Paola Berenstein. Corpografias urbanas: o corpo enquanto resistência. Cadernos PPGAU/UFBA, Salvador, ano 5, número especial, 2007.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 2011.
MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. Arquitetura e política: ensaios para mundos alternativos. São Paulo: Editora G. Gili, 2014.
PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011.
SANTAELLA, Lúcia. Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós-humano. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n.22, p.23-32, dez. 2003.
SENNETT, Richard. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. Rio de Janeiro: Record, 2018.